quinta-feira, 1 de setembro de 2011
VEJA DECISÃO JUDICIAL QUE SOLTOU O BONECO CIDADÃO
PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
Juízo de Direito da Juizado Esp. da Fazenda Pública da Comarca de Natal
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PROCESSO N.º 0803461-29.2011.8.20.0001
Procedimento do Juizado Especial Cível
REQUERENTE: SANDRO TAVARES FERREIRA DA SILVA
REQUERIDO: Municipio de Natal
DECISÃO
Vistos etc.
Sandro Tavares Ferreira da Silva, qualificado na inicial, promoveu a presente demanda, através de causídico com habilitação nos autos, em desfavor do Município de Natal, pleiteando a concessão de antecipação de tutela, para que seja determinada a devolução do chamado "Boneco Cidadão", bem como a entrega do auto de infração lavrado em razão da apreensão do mesmo.
Aduziu que realizou uma manifestação pacífica em prol da população de Natal, referente a má conservação das ruas da cidade, utilizando-se para tanto, de um boneco feito de isopor e tinta, comumente conhecido como Boneco Cidadão pela mídia local. Informa que foi abordado por agentes municipais da Prefeitura de Natal e que os mesmos procederam com a apreensão do seu boneco, sem contudo lhe entregar o auto de infração referente a tal fato.
Alega que a administração agiu de forma ilegal, tendo em vista que tal boneco é um instrumento legítimo de reivindicação da população, bem como de manifestação do autor que denunciava a existência de um grande buraco na rua, bem como que tal apreensão lhe causou prejuízos morais e patrimoniais.
Acostou documentos.
É o relatório. Decido.
A presente demanda trata de interessante questão que, em uma análise mais superficial, poderia apontar para um fato insignificante. Tratar-se-ia apenas sobre a propriedade de um boneco. Entretanto, a controvérsia posta nos autos traduz pontos de grande relevância, eis que pode revelar a arbitrariedade do ente municipal ou melhor ainda a prática de ato de censura, com a violação do princípio constitucional da livre manifestação do pensamento.
É fato público e notório que o boneco cidadão é um instrumento de protesto que visa apontar a degradação das ruas desta cidade, mais precisamente da existência de um grande número de buracos que interferem na mobilidade urbana e ainda colocam em risco as pessoas, sejam pedestres ou motoristas.
As fotos colacionadas aos autos atestam que o referido boneco foi retirado do poste onde estava amarrado por fiscais da SEMURB e levado em um veículo de sua propriedade.
Não foi expedido auto de infração, nem o Poder Público apresentou qualquer justificativa para o ato, mesmo instado para tanto por este juízo, eis que, por cautela, antes de decidir sobre o pedido de urgência, cuidei de determinar a intimação do Município de Natal para falar nos fls. 1 autos, mas este permaneceu inerte.
Não colacionou qualquer dado, técnico ou não, que justificasse a apreensão do boneco. Não informou em que consistia o obstáculo imposto por este que determinaria o exercício do Poder de Polícia que detém. Nada neste sentido.
Seria possível que realmente a SEMURB estivesse apenas no exercício de sua atividade própria, na forma do Decreto nº 8.787, de 02 DE julho de 2009, mas, mesmo assim, esta atividade demandaria a realização de procedimento próprio, inclusive com ampla defesa, como prevê por exemplo, o artigo 52, do Decreto 4621/92 (dispõe sobre a publicidade ao ar livre) e o efetivo cotejo entre o livre exercício da manifestação de protesto alí temporariamente localizada e as questões urbanísticas envolvidas na controvérsia.
Apenas para ilustração, se o argumento para a retirada do boneco for a perturbação da visualização do trânsito ou porque deprecia a paisagem ou logradouro público, caberia questionar se tal mal não está bem mais presente no próprio buraco que o boneco apontava ou até mesmo sinalizava a sua existência.
Neste momento de cognição sumária, próprio da análise da tutela antecipada, vejo que existe prova de que o "boneco cidadão" foi realmente apreendido pela SEMURB, bem como os dados que são fornecidos até o presente momento, em especial pela omissão do Município em justificar a conduta ou apresentar o procedimento administrativo que a impôs, induzem esta Magistrada a concluir pela verossimilhança da alegação de que o ato atacado deriva do puro e simples atentado ao exercício do direito de manifestação, crítica e protesto.
Não se trata pois neste procedimento apenas de uma discussão menor sobre a propriedade do "boneco cidadão", mas sim de impor limites à atuação administrativa e que pode revelar o descumprimento de princípios basilares do regime democrático, sendo que o ato de apreensão parece ser símbolo.
E se existe ao menos fumaça de que estar-se-ia diante de uma censura à livre manifestação do pensamento, deve o judiciário intervir, com a finalidade de preservar este direito fundamental.
Interessante colacionar alguns fundamentos apostos pelo Ministro Celso de Mello no voto proferido na ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 187 DISTRITO FEDERAL, para que seja possível melhor entender o postulado da Carta Magna que ora se pretende preservar:
"(...)Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder.
(...)
O sentido de fundamentalidade de que se reveste essa liberdade pública permite afirmar que as minorias também titularizam, sem qualquer exclusão ou limitação, o direito de reunião, cujo exercício mostra-se essencial à propagação de suas idéias, de seus pleitos e de suas reivindicações, sendo completamente irrelevantes, para efeito de sua plena fruição, quaisquer resistências, por maiores que sejam, que a coletividade oponha às opiniões manifestadas pelos grupos minoritários, ainda que desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou impopulares.
Daí a correta observação feita pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, neste processo, em primorosa sustentação de sua posição a respeito do tema, na qual, ao destacar “a garantia do dissenso como condição essencial à formação de uma opinião pública livre”, enfatizou “o caráter contramajoritário dos direitos fundamentais em causa”:
“A reivindicação por mudança, mediante manifestação que veicule uma ideia contrária à política de fls. 2
governo, não elide sua juridicidade. Ao contrário: a contraposição ao discurso majoritário situa-se, historicamente, no germe da liberdade da expressão enquanto comportamento juridicamente garantido. (...).
...................................................
Os direitos fundamentais em causa, vocacionados à formação de uma opinião pública livre, socorrem fundamentalmente as minorias políticas, permitindo-lhes a legítima aspiração de tornarem-se, amanhã, maioria; esta é a lógica de um sistema democrático no qual o poder se submete à razão, e não a razão ao poder. Decerto, inexistiria qualquer razão para que os direitos de liberdade de expressão, de reunião e de manifestação fossem alçados a tal condição caso seu âmbito normativo garantisse, exclusivamente, a exteriorização de concepções compartilhadas pela ampla maioria da sociedade ou pela política em vigor. Se para isso servissem, comporiam uma inimaginável categoria de ‘direitos desnecessários’; não seriam, pois, verdadeiros direitos.
A proibição do dissenso equivale a impor um ‘mandado de conformidade’, condicionando a sociedade à informação oficial – uma espécie de ‘marketplace of ideas’ (OLIVER WENDELL HOLMES) institucionalmentelimitado. Ou, o que é ainda mais profundo: a imposição de um comportamento obsequioso produz, na sociedade, um pernicioso efeito dissuasório (‘chilling effect’),culminando, progressivamente, com a aniquilação do próprio ato individual de reflexão (...).
A experiência histórica revela, pois, que o discurso antagônico não requer repressão, mas tolerância; se não fosse pela óbvia razão de que,despida de certo grau de tolerância, a convivência se tornaria socialmente insuportável, justificar-se-ia tal padrão de conduta pela sempre possível hipótese de que a ‘verdade’ não esteja do lado da maioria.
...................................................
Perceba-se, nessa linha de perspectiva: um candidato ou partido político que inclua em sua plataforma ou programa de governo a descriminalização de uma conduta delituosa está a fazer ‘apologia ao crime’? No mesmo tom: seria ilegal uma manifestação pública tendente a arregimentar apoio à apresentação de um anteprojeto de lei de iniciativa popular com o objetivo de propor a descriminalização de determinada conduta? E a publicação de uma obra literária, individual ou coletiva difundindo a mesma opinião? A propósito: a sustentação teórica do reducionismo penal – que, em termos radicais designa-se ‘abolicionismo’ – é prática criminosa?” (grifei)
Cabe enfatizar, presentes tais razões, que o Supremo Tribunal Federal, no desempenho da jurisdição constitucional, tem proferido, muitas vezes, decisões de caráter nitidamente contra majoritário, em clara demonstração de que os julgamentos desta Corte Suprema, quando assim proferidos, objetivam preservar, em gesto de fiel execução dos mandamentos constitucionais, a intangibilidade de direitos, interesses e valores que identificam os grupos minoritários expostos a situações de vulnerabilidade jurídica, social, econômica ou política e que, por efeito de tal condição, tornam-se objeto de intolerância, de perseguição, de discriminação, de injusta exclusão, de repressão e de abuso contra os seus direitos."
Poder-se-ia afirmar que a manifestação do autor, instrumentalizada através do boneco em questão seria isolada, sem eco, e, por isso, não mereceria o despertar do Judiciário para a questão. Seria insignificante a apreensão atacada e não mereceria a movimentação da atividade judicial. Ocorre que essa liberdade de manifestar a sua crítica, insatisfação, protesto através do meio de que dispõe, pacificamente, sem agredir quem quer que seja, merece proteção. Essa sua liberdade tem conteúdo e merece a atenção que lhe foi conferida pela Carta Magna, como direito fundamental de qualquer cidadão, condição indispensável para a preservação do regime democrático.
Os fundamentos acima apontados já fazem transparecer a urgência na concessão da medida, de forma a impedir o cerceamento de direito fundamental.
Outrossim, não vislumbro perigo de irreversibilidade da tutela.
Ante o exposto, defiro o pedido de tutela antecipatória para determinar que o ente demandado realize a entrega do chamado "boneco cidadão" ao autor, no prazo de 24 horas, bem como na forma do artigo 399, do Código de Processo Civil, apresente em juízo o auto de infração referente ao fato narrados nos presentes autos, no prazo de cinco dias.
Cite-se e intime-se a parte demandada, advertindo-se que a entidade ré deverá apresentar a defesa no prazo de 30 (trinta) dias, informando, no mesmo ato, se há interesse em fls. 3
apresentar proposta de acordo.
Após, sendo o caso de audiência de conciliação, seja designada para data próxima e
desimpedida.
Publique-se. Intime-se.
Natal/RN, 29 de agosto de 2011.
Érika de Paiva Duarte Tinôco
Juíza de Direito
fls. 4
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